“Paciente portadora de doença de Alzheimer, em estado vegetativo persistente, restrita ao leito, estável clinicamente”.
Recebi o relatório médico e por alguns instantes li e reli. Repetidas vezes. Aquele papel resumia uma doença neurodegenerativa avançada. Mas não conseguia descrever quem era aquela pessoa, portadora daqueles diagnóstico e prognóstico. Aquela pessoa por detrás daquele relatório era a minha mãe.
Depois daquele dia, ela viveu por mais cinco anos. Acamada, com sonda para alimentação, inerte na maior parte do tempo, com pequenos reflexos e tentativas de interação que conseguiam expressar dor ou desconforto e, por vezes, o esboço de um sorriso. Foram 25 anos de enfrentamento de uma doença incurável que, aos poucos, foi lhe impedindo de manter uma vida de relação, dentro dos modelos de interação que conhecemos. A pergunta que ficou para mim ao longo desse tempo foi: a partir de quando a vida de minha mãe começou a terminar?
Objetivamente, a terminalidade da vida biológica é determinada a partir do diagnóstico de uma doença irreversível, que conduz a pessoa para os seus últimos seis meses de vida, com sinais e sintomas que indicam essa probabilidade.
No entanto, nem todas as doenças graves e incuráveis necessariamente obedecem essa cronologia de tempo. A terminalidade, do ponto de vista subjetivo, traria implícita também a ideia de uma vida que escapa por entre os dedos de forma lenta, sem prazo determinado. Falo de uma vida que se apaga aos poucos, com prejuízo da funcionalidade, o que impede a pessoa de preservar a sua autonomia.
A vida da minha mãe, no sentido pleno de seu exercício, começou a terminar quando, aos poucos, foi perdendo a capacidade de se lembrar do nome das coisas ou das pessoas, de cuidar de sua higiene pessoal, de controlar os esfíncteres, de se alimentar pela via oral, de se locomover, de escolher sozinha a sua própria posição na cama e de depender do apoio de cuidadores.
O Alzheimer a impediu de se manter em movimento. Apesar disso, tudo ao seu redor se movia para que ela estivesse confortável, com a pele quentinha e hidratada, com cobertor para os dias frios e janelas abertas para o vento fresco nos dias de calor.
A HISTÓRIA DE SUA VIDA E O SEU LEGADO ERAM MUITO MAIORES DO QUE A SUA DOENÇA – E EU VOU HONRÁ-LA.
A vida da minha mãe terminou há 5 anos. Mas ela vive em mim: enquanto eu respirar ela existirá. Do mesmo jeito que a vida da minha mãe não acabou exatamente no dia da morte dela, também não deixou de existir no dia do velório. Eu a perpetuo de novas formas, do meu jeito. Um deles é o fato de que eu me tornei psicóloga com atuação em cuidados paliativos a partir deste processo com a minha mãe. Desde pequena, minha mãe foi meu impulso. Mais recentemente, minha mãe me deu meu maior propósito. Ela é meu começo, meu meio, meu fim, meu eterno.
É sobre terminalidade que nós vamos sempre conversar neste espaço. Sobre os dias meio cheios de névoa que a terminalidade causa – tanto pra quem vai quanto pra quem fica. E o que podemos encontrar entre um suspiro e outro.
E no seu caso? Quem se mantém vivo em você? Como você faz para que essa pessoa continue existindo nos seus dias, ainda que já tenha partido?