Políticas da Morte8 min de leitura

Políticas da Morte8 min de leitura

Política – Existe uma política da morte. Ou mais precisamente, existem políticas da morte. Foi aliás isso que me trouxe aqui. Eu li certa vez um post do inFINITO sobre como doar seu corpo, após a morte, ao ciclo da natureza, de forma a que ele contribua para a vida de outras espécies. Compartilhei o post, escrevi um comentário afirmativo a respeito, e a partir dali criamos algum laço, que acabaria desembocando na minha presença aqui. 

Pois bem, há políticas da morte que são realizadas a favor da vida, da vida compreendida como a filosofia compreende o ser, isto é, da vida total, que é a vida de todos, e mais ainda, a vida de tudo, a vida do todo. Legar o seu corpo ao todo, para fertilizá-lo, é uma espécie de comunismo da morte. Significa perceber não apenas a sua existência como parte de um todo que deve ser favorecido por ela, mas também a sua inexistência, a sua morte. Como a morte do indivíduo pode contribuir para a vida de todos, de todos para além da espécie humana. Essa é a política da morte que, no meu modo de ver, devemos afirmar.

Mas, assim como existem políticas da vida em disputa no mundo, há também políticas da morte em disputa. E, claro, há uma relação entre elas. Geralmente, fazemos da morte o que fazemos da vida. A maior parte da humanidade vive hoje sob sistemas sociais em que o princípio da coletividade está muito mais fraco do que o princípio do individualismo. Isso é recente, historicamente. Até a Idade Média, os países europeus mantinham sistemas sociais estritamente coletivistas, apesar de extremamente desiguais. Nesse mundo pré-moderno, o indivíduo, como tal, mal existia: cada pessoa nascia e morria com um lugar e uma função rigidamente assinaladas. O indivíduo é, senão uma invenção, uma redescoberta moderna. Uma extraordinária redescoberta. Mas que foi se degradando, à medida em que o princípio comunitário foi perdendo cada vez mais espaço. Em boa parte do mundo, hoje, vigora o que um filósofo camaronês chamou de necropolítica. A necropolítica, como o nome indica, é a política da morte. A política mortífera da morte. Ela consiste em administrar a morte de grupos sociais vulneráveis, que não podem ser incluídos no capitalismo, tal como ele existe hoje. Nesse sentido, muitas políticas públicas que nos parecem sem sentido, devem ser percebidas como tendo um sentido de gestão de camadas sociais que são consideradas excedentes, descartáveis. É o que Marx, em O Capital, já chamava de exército de reserva: as milhões de pessoas sem emprego, em estado de miséria, que cumprem a função, para o capitalismo, de jogar para baixo o preço dos salários.

VEJAM O BRASIL, POR EXEMPLO. QUE SENTIDO TEM UMA POLÍTICA DE DROGAS QUE FAZ OS TRAFICANTES MATAREM ENTRE SI, IREM PRESOS EM CADEIAS SUB-HUMANAS, ONDE TAMBÉM SE MATAM, QUE FAZ A POLÍTICA INVADIR COMUNIDADES E MATAR INOCENTES – QUE SENTIDO TEM ISSO TUDO, JÁ QUE A CADA MASSACRE TODO CICLO SE REPETE?

É o sentido da necropolítica: administrar a vida do excedente humano como se fosse uma vida “morrível” e matável. 

Pois bem, contra a política mortífera da morte e a política mortífera da vida de que ela se desdobra, existem as políticas vitalistas e comunitárias da morte. Quando estive no Tibet, testemunhei um ritual em que corpos de budistas eram esquartejados e dados de comer aos abutres. O ritual se chama “enterro celeste”, sky burial, como aprendi em inglês. Mas desconfio que esse nome não seja dos próprios budistas, pois não se trata de um enterro, e sim de um banquete. Eu portanto chamaria de banquete celeste. Nesse dia, nós que comemos tanto os animais, nos entregamos para que eles nos comam.     
Psicologia – Bem, se a política da morte designa a relação da morte individual com a totalidade social ou a totalidade terrestre, ou mesmo a totalidade ontológica, a psicologia da morte diz respeito aos sentidos da morte para a subjetividade do indivíduo que deverá lidar com a sua própria finitude. Assunto inesgotável por excelência, uma vez que ter a consciência da morte define a própria humanidade, e definiu todas as culturas existentes até hoje. Há mesmo filósofos que consideram que a própria origem da cultura está diretamente relacionada à morte. Tem um filósofo alemão de que eu gosto muito, Christophe Türcke, contemporâneo, que considera que o ritual do sacrifício humano é o momento inaugural da cultura para a humanidade. Cultura, cuja etimologia remete a cultivo (daí agricultura), pressupõe repetição. Tentemos imaginar o que era a espécie humana em seus primórdios, no paleolítico inferior, há centenas de milhares de anos. Como terá surgido a linguagem verbal? A capacidade de abstração? De cooperação? É possível que a morte tenha desempenhado um papel fundamental nesses processos. O sacrifício humano teria sido uma tentativa de domesticação da morte, de controlar o que não se compreendia. Matava-se propositalmente, para tentar apreender e compreender o que era incontrolável e incompreensível. É um paradoxo difícil, eu sei.

Mencionei isso apenas para dar uma ideia da imensidão que é a experiência subjetiva da morte, e como diversas culturas e diversos indivíduos lidaram com isso, ao longo da história humana. Mas na insignificância aqui da minha existência individual, eu queria chamar atenção para um sentido no meio desse mar de possibilidades. A consciência da morte é sobretudo um problema narcísico: quem morre, afinal, é sempre um eu. Ora, é muito difícil, é angustiante e vertiginoso encarar a morte do nosso próprio eu. Mas tem uma coisa ainda pior de encarar: a finitude dos nossos filhos.

Eu quis falar disso porque sou pai, tenho três filhos, e os dois mais velhos estão justamente em torno da idade em que uma criança se dá conta de sua finitude. Uma criança de dois, três, quatro anos, é sem-morte. O meu filho via os filmes mais terríveis – e não há filmes mais terríveis do que os infantis, quem é da geração do Bambi sabe do que estou falando – dando despreocupadas gargalhadas. Tem um filme chamado “Fuga das galinhas”, que é, se me permitem brincar com um assunto sério, quase que um remake de Shoah, para crianças. As galinhas estão presas num campo de concentração e tentam fugir dos cães nazistas que as mantêm presas. Meu filho, Lourenço, alheio a tudo isso, dava gargalhadas cada vez que uma galinha tentava fugir e se espatifava no chão. Criança pequena é sem-morte. Mas uma criança de sete, oito anos começa a morrer, a morrer para si. 

E o que é o ego de um pobre pai, de uma pobre mãe, senão um ego que se desdobrou no ego dos filhos – não se enganem, nós os amamos tão perdidamente por puro narcisismo – e que agora, além de ter que lidar com a consciência da própria finitude, tem que lidar com a consciência dos filhos de sua própria finitude? É um eu dentro do eu, uma dor dentro da dor, uma morte dentro da morte. Quanto mais, suponho, para um sujeito ateu, como eu. Não sou um ateu militante, longe disso, sou casado com uma católica e adoro o catolicismo dela – quase sempre rs. Mas não acredito em Deus, em vida depois da morte, nada disso. O que me coloca diante de um dilema: como consolar meus filhos sem mentir para eles, já que tenho um compromisso de nunca mentir para eles. Outro dia a Iolanda, Ioio, minha filha mais velha, de nove anos, antes de dormir, me perguntou, angustiada: “papai, mas o que vai acontecer quando eu morrer? Não vai existir mais Ioio?”. Aquilo doeu muito; não existir mais Ioio talvez doa mais em mim do que nela. Mas eu me investi de tranquilidade, e fiz o que faço sempre. Respondi que ninguém sabe o que vai acontecer, o que é verdade. Que algumas religiões pensam que a vida após a morte. Que outras culturas acreditam que nossa alma se mantém viva. E que outros ainda acreditam que morrer é como dormir para sempre. E então passei a falar da vida. Que a melhor maneira de ficar bem com a morte é estar bem com a vida.


Cuidar da sua vida, cuidar de si e do outro, do outro próximo e da sua comunidade. Se desenvolver, ter curiosidade com tanta beleza e conhecimento que existem no mundo. Tornar-se uma pessoa rica em virtudes e conhecimentos. E eu vou acompanhar tudo isso, minha filha, de pertinho, até eu ficar bem velhinho, e já estarei cuidando de seus netos. Porque a vida é longa, e boa, e a sua está só começando. E nisso ela estava bocejando já, e dormiu serena. O mesmo não se pode dizer de mim.   


Texto escrito por Chico Bosco para o evento SESC Inspira – Ações para uma vida mais saudável. Gostamos tanto da fala que solicitamos gentilmente que pudéssemos compartilhar com mais pessoas.


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