“Vai ter uma festa
Que eu vou dançar
Até o sapato pedir pra parar
Aí eu paro
Tiro o sapato
E danço o resto da vida”
Chacal
Naquela família, eram só os três: a Sandra, o Gercimar e a filha deles, a Geandra. Uma história de amor de mais de 30 anos.
Eu conheci a Sandra no nosso grupo de apoio a familiares e ela nos contou uma história que mudou para sempre a vida de sua família. E, no fim das contas, a minha também.
Gercimar precisou partir, Sandra ficou viúva. E, apesar de toda a tristeza, o relato dela é forjado na força do orgulho; é como se cada vez que contasse essa história, uma parte da dor fosse curada. A cada vez que ela pronuncia “Gercimar”, Gercimar vive.
Geandra, a filha, sempre foi a grande jóia da família. E, desde que ela havia entrado no curso de medicina, os pais eram só felicidade; flutuavam.
O tempo de graduação já havia passado da metade e, então, uma notícia interrompeu aquela maré calma. Gercimar foi diagnosticado com um câncer metastático. As células malignas se espalharam pelo corpo todo e não havia chance de cura – mas, sim, de cuidado.
A Sandra conta que, durante dois anos, o marido lidou muito bem com o tratamento e mesmo com os efeitos colaterais. “Apesar de durão, ele era uma simpatia e conquistou toda a equipe de saúde”, relembra.
A formatura estava logo ali. Como em uma maratona, Geandra já havia corrido tudo o que podia, dado tudo de si, e já via a linha de chegada. Quanto mais metros avançava, maior a alegria ficava.
Só que a vida de Gercimar também começou a alcançar a reta final. E o medo de que ele não estivesse presente no momento mais aguardado pela família começou a tomar conta de todos.
Quanto mais a formatura se aproximava, mais ele ia enfraquecendo. Grandezas inversamente proporcionais.
Parecia que não podia ficar pior. Só que as consequências da pandemia de Covid-19 fizeram com que a festa precisasse ser adiada em um mês.
A semana da formatura finalmente havia chegado. Mas também parecia que o limite de Gercimar havia chegado junto. Mãe e filha nunca tinham visto aquele homem tão frágil. Foi um baque.
Na manhã da festa, não sabiam o que fazer.
Tudo levava a crer que a Geandra não iria estar com o pai na própria formatura. Mas a equipe médica tentou uma última cartada: o único jeito de Gercimar ser liberado do hospital seria uma transfusão de sangue. Uma dose de ânimo para um corpo já tão debilitado – mas que queria se levantar, se vestir e dançar.
A equipe de saúde entendeu que não havia um só remédio nas prateleiras do hospital que o curasse. A cura estava do lado de fora, bem longe dali.
A mobilização foi geral: ligações, documentos, contatos com bancos de sangue. Mas não havia nada senão para cirurgias de emergência.
As horas passavam rápido.
A esperança esmoreceu. Não havia saída, Gercimar ficaria no hospital.
Quando todos já haviam desistido, o que parecia impensável aconteceu: as duas bolsas de sangue de que ele precisava apareceram, uma em cada canto da cidade. “Não era possível!”, pensavam. A transfusão de sangue virou transfusão de amor. Uma força-tarefa como jamais haviam visto. Médicos, enfermeiros, motoristas, os funcionários dos bancos de sangue: todos sabendo da história e todos se sentindo parte daquilo; se sentindo parte de algo maior.
Missão cumprida.
A Sandra, é claro, ficou contente, mas não deixava de estar preocupada. “Será que não é mesmo arriscado?”, se perguntava.
Uma enfermeira a observava. Aquela tensão no ar poderia ser cortada com uma faca. Foi aí que ela fez questão de ir muito além: ofereceu o número do celular pessoal para Sandra, para que ligassem se houvesse necessidade. E disse mais: “posso ir à festa com vocês, se quiser!”.
Aquela cumplicidade era o alívio que faltava.
Como num passe de mágica, Sandra chegou em casa levando o melhor presente para Geandra: o pai. Ficou difícil fazer maquiagem enquanto as lágrimas caíam. Vestido, bolsa, sandália. Cabelo. Gercimar escolheu o melhor terno!
Mas apareceu mais um problema: os sapatos. O pé de Gercimar havia inchado tanto que nenhum calçado cabia mais.
Constrangidos, mas imparáveis, tomaram a única decisão possível: ele iria só de meias.
Os três chegaram ao local da festa. Desceram do carro um a um, elegantes, em seus trajes de gala. Mas o desconforto por Gercimar estar só de meias ainda estava lá.
E aí Geandra, como uma Cinderela às avessas, olhou para os pés descalços do pai e olhou para seus pés calçados. Então abaixou-se, tirou as sandálias e sentiu o chão sob os pés.
A magia alcançou Sandra, que desceu do salto alto.
Todos no mesmo nível.
Juntos, de braços dados, entraram por aquela porta. E os amigos da Geandra não acreditavam naquilo que eles estavam vendo. Eles sabiam de todo o esforço feito para que aquilo se concretizasse. Foi uma alegria só!
E Gercimar? Ah, Gercimar… Estava leve, levitando, dançando, se divertindo. Uma disposição que prontuário médico nenhum seria capaz de explicar.
Os primeiros acordes da valsa ressoaram pelo salão. Pai e filha se entreolharam, sabiam o que tinham que fazer. Deslizaram até o centro da pista de dança e, por alguns instantes, parecia que o mundo era povoado apenas por eles dois. Estado de graça.
NA HORA ELES NÃO NOTARAM MAS, DE REPENTE, NÃO ESTAVAM MAIS SOZINHOS.
Pelo canto do tablado, pingavam pares e mais pares de calçados. Sapatos sociais, sandálias, scarpins e os mais diversos saltos altos. Centenas de pares largados. Não eram mais necessários.
Todos os outros formandos, pais, mães, familiares e amigos acompanharam Gercimar e Geandra. Começava, ali, o baile dos descalços. Todos juntos, num mesmo ritmo, numa mesma frequência, celebrando aquele momento mágico e sagrado.
Naquele momento já não era mais a formatura de uma turma de médicos. Todos graduados: se tornaram mais humanos do que nunca.
Aquelas pessoas, recém-formadas em medicina, saíram dali entendendo que a cura, muitas vezes, não está no hospital, no tratamento, na quimioterapia. Elas entenderam que a vida é sobre as pessoas e não sobre equipamentos, prognósticos, medicamentos.
Sem notar, todos estavam fazendo cuidados paliativos fora do hospital. Valorizando a vida pelo que importa, sem uma perseguição louca por uma cura biológica que, com frequência, pode nunca existir. Ali, a maior qualidade de vida possível, intensamente pelo tempo que importa.
Gercimar morreu uns dias depois do baile dos descalços. Mas não sem antes segurar em suas mãos a carteira do conselho regional de medicina de Geandra. O último beijo que ele deu em sua filha foi antes de ela ir para o primeiro plantão da vida. Um ciclo que se encerrava, um ciclo que se abria.
✨Esse artigo faz parte da série “A revolucionária forma de cuidar.”