“Mas estou curioso, como você se sente em ler isso? Que você é uma paciente apta a receber cuidados paliativos.”4 min de leitura

“Mas estou curioso, como você se sente em ler isso? Que você é uma paciente apta a receber cuidados paliativos.”4 min de leitura

“Eu já ouvi muitos diagnósticos difíceis. Já me fizeram inúmeras perguntas que não haviam respostas. Porém essa talvez tenha sido a única que me deixou sem palavras. Foram meses até tomar coragem e falar com o médico Paliativista. Logo eu, que já havia me submetido aos tratamentos mais violentos e desumanos durante 24 anos, sem questionar, sem medo, estava completamente congelada. Havia um lugar no mundo pra mim. Um lugar em que seria escutada. Em que eu poderia repetir quantas vezes quisesse sobre como eu estava sem que revirassem os olhos, sem que dissessem: “Tá, tá bom, pula essa parte.”. Como assim “pula essa parte”? Essa parte sou eu, essa parte é a minha vida. Então com o tempo você silencia para não ser repetitiva e desagradável, afinal todos estão falando sobre trabalhos, passeios, encontros, casamentos, filhos, viagens… e tudo que eu havia pra contar era tão antigo que parecia história de outra encarnação. O que havia de novo era enfadonho.

SILENCIA. ENGOLE O CHORO. TÁ TUDO BEM. VAI PASSAR. RESPIRA.

Fique sem grana e doente, veja quem permanece na sua vida e quem aceita entrar e ficar. Eu resolvi ficar doente logo de forma incurável e sem tratamento.

PORQUE EU GOSTO DO EXTRAORDINÁRIO!

Eu resolvi costurar doenças aleatórias graves, emendando uma na outra fazendo uma bela colcha de retalhos colorida. Sim, eu consegui colorir a minha vida apesar de tudo. Apesar da solidão, dos abandonos, das rejeições e das dores que levam inúmeros ao extremo desespero para acabar com elas. Um suicida não quer tirar a própria vida, ele quer tirar a dor que está sentindo. Jamais vou esquecer da frase que ouvi o meu médico dizer em uma palestra: “Uma doença não tem cura. Um paciente sempre tem.” Era isso que eu queria ter ouvido ao ser diagnosticada pelo neurologista mais conceituado do Rio de Janeiro. Recebi o oposto. Tratamentos desnecessários, ser cobaia humana dentro da UFRJ, violência atrás de violência para curar o que não havia cura.

HOUVE UM ABANDONO DE VULNERÁVEL DA FORMA MAIS CRUEL DE QUEM CONFUNDIU MEDICINA COM COMÉRCIO.

Nunca houve tratamento para cuidar da minha dor, somente check-list de remédios que me matavam enquanto a doença progredia, enquanto minha vida existia sem mim. Enquanto eu me tornava dependente química, porque meu traficante usava jaleco. A ideia de me manter sedada, correndo o risco diariamente de não acordar, parecia normal para os médicos, afinal eu não tinha cura.

O que é cura pra você?
Pergunte em corredores de hospitais, salas de espera, pergunte para cada um: “Qual é a sua cura?”; “Qual é o seu milagre?” Nenhuma resposta será igual. Para pacientes como eu, cura pode ser tomar banho em pé, passar o dia acordada sem dor, fazer as unhas, comer uma comida gostosa, saber se é dia ou noite, sentir o sol queimar na pele, ver o mar, tomar banho de chuva, ouvir música, cantar e dançar… e chorar…por saber que esse lampejo de lucidez me seria roubada em instantes. Sem nenhum aviso, tudo viraria dor e medo novamente em um ciclo interminável. Dois meses e 15 dias sem dor. Sei que o ideal é esperar 3 meses pra vingar, como ensinou a minha avó, mas hoje eu completo 40 voltas ao redor do sol.

É UMA CERTEZA ABSOLUTA DE QUE A VIDA PODIA SER BEM MELHOR, E SERÁ! MAS ISSO NÃO ME IMPEDE QUE EU REPITA: É BONITA.”

Gratidão imensa aos meus pais que seguem caminhando ao meu lado, ao Tom Almeida por ter me mostrado o Paliativismo, ao dr. Filipe Gusman por honrar com dignidade, amor e competência, sua escolha em ser um médico Paliativista.

É com muita alegria e vida, que eu digo:

“Oi, eu me chamo Karol, e sou uma paciente em cuidados paliativos. Daqui pra frente, minha vida comigo. Presente.”

Rio de Janeiro, 2 de Setembro de 2022.


Karol Müller foi diagnosticada com Cefaleia em Salvas aos 16 anos. Uma doença rara, sem tratamento, sem estudos científicos que expliquem a doença e suas possíveis evoluções. Passou por violências médicas, abandono, descaso, omissão.
Seu quadro evoluiu para o mais grave, tornando-se incapacitante por volta de 2013. Teve sua vida roubada até encontrar nos cuidados paliativos a sua vida de volta.
Hoje, ao invés de lamentar os 10 anos sem ela, decidiu que irá conscientizar as pessoas sobre a imensidão que cabe nos cuidados paliativos. Tornar a Medicina Paliativa acessível para todos, e impedir que mais pessoas precisem esperar 24 anos para serem cuidados e terem uma vida digna.

Ela participou, no dia 19/11, do Festival inFINITO – Ano 5 ✨contando um pouco da sua história como paciente paliativista no painel “A revolucionária forma de cuidar”.

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