Instituto Ana Michelle Soares – A revolução paliativa 🍃9 min de leitura

Instituto Ana Michelle Soares – A revolução paliativa 🍃9 min de leitura

“Meu desejo hoje é abraçar o mundo e retribuir tudo isso que tenho recebido. Quando a vida se torna frágil, sabemos o real valor que ela possui.”

Ana Michelle Soares

CUIDADOS PALIATIVOS

Receber um diagnóstico de uma doença ameaçadora à vida (e como familiar desse paciente) é um desafio por si só. Daquele momento em diante se desenham várias dores e diversos desafios. Os Cuidados Paliativos chegam como uma camada extra de conforto, aliados ao tratamento em busca da cura e/ ou da melhor qualidade de vida possível diante da possibilidade da morte.

Quando o chão sai dos nossos pés, somos muitas interrogações. E todas elas pontiagudas, geram caos, mudam as nossas perspectivas. Por isso, os Cuidados Paliativos entendem que há várias dores e desconfortos a serem tratados. Não apenas os incômodos físicos, como os emocionais, sociais, espirituais e tudo o que mais doer.

Administrar tudo isso é complexo e demanda uma soma de esforços. Por isso, os serviços de Cuidados Paliativos prezam por uma equipe multidisciplinar horizontal: profissionais da medicina, da enfermagem, da terapia ocupacional, da psicologia, da psiquiatria, da assistência social, da espiritualidade, da nutrição, da fonoaudiologia, da odontologia e quem mais puder ajudar nesse processo.

Os Cuidados Paliativos não olham apenas para uma doença ou para um órgão doente; olham para uma pessoa. Com medos, amores, desejos, profissões e configurações familiares diferentes. Não existe “o paciente”, mas José, Maria, João, Márcia, Débora. Cada indivíduo é um e cada encaminhamento de cuidado é um. Tudo individualizado. Com princípios, mas sem protocolo homogêneo.

OS CUIDADOS PALIATIVOS NÃO SÃO UM DEVER, MAS UM DIREITO.

Um direito que, contudo, repelimos. Achamos que é desistência, que é gambiarra, que é necessário largar o tratamento curativo e se entregar. Não: Cuidados Paliativos são insistência em qualidade de vida. Com qualidade de vida há mais condições físicas e emocionais de encarar os desafios que se desenham após o diagnóstico de uma doença grave. Não é uma questão de “ou isto ou aquilo”, é uma soma de esforços. Aceitar os Cuidados Paliativos não é abandonar qualquer chance de cura, pelo contrário.

Minimizar ou zerar desconfortos durante o processo de adoecimento é fundamental para o manejo de efeitos de uma enfermidade e mesmo para os efeitos colaterais de tratamentos.

Além disso, os Cuidados Paliativos acolhem não só os pacientes, como os familiares e os cuidadores (formais ou informais). O sofrimento da equipe de saúde também é validado e tratado.

O CENÁRIO NO BRASIL

No Brasil, morremos mal. Sempre figuramos longe das melhores posições nos rankings de qualidade de morte. E isso interessa literalmente a todos nós. Para que uma mudança de mentalidade aconteça, realmente precisamos ter essa conversa dentro de casa e em sociedade. Precisamos de políticas públicas, precisamos de boa comunicação da imprensa, precisamos que pacientes, familiares e profissionais de saúde tenham mais consciência de seus papéis.

Estima-se que, por aqui, existam cerca de 250 serviços de Cuidados Paliativos e em torno de 4 mil profissionais de saúde atuando na área. Estamos falando de menos de 10% do que seria necessário em termos de equipes, ou 1% do que seria ideal de quantidade de trabalhadores qualificados.

Além do baixo alcance, a distribuição é profundamente desigual aqui em território nacional. Ainda temos mais acesso a Cuidados Paliativos no entorno da Avenida Paulista do que em toda a região centro-oeste, por exemplo.

Se a quantidade de serviços de Cuidados Paliativos no Brasil já é insuficiente, quanto mais camadas da sociedade compreenderem que são desejáveis, mais aceleraremos o processo de expansão da prática.

“Para morrer, basta estar vivo”, versa o ditado popular. A jornalista e escritora Ana Michelle Soares colocou esse pensamento em outra perspectiva. Dizia: “a finitude é crônica”. Em poucas palavras, um fato – que também é provocação. Não podemos nos curar da finitude e nada nem ninguém até hoje foi capaz de reverter essa nossa condição humana. AnaMi morreu dia 21 de janeiro de 2023, aos 40 anos.

“A morte é a única certeza que temos na vida”; outro ditado. Temos essas frases prontas, que costumam encerrar conversas, colocar um ponto final no desconforto. E, apesar de serem verdade, passamos a vida inteira fingindo que não são. A morte é abstrata, é mau agouro, um assunto a ser evitado, bate na madeira. Um, dois, três.

Ana Michelle Soares se contrapunha a um imaginário: o de que todos vamos morrer velhinhos, numa cama quentinha, confortavelmente e rodeados de amores. Se for dormindo, ainda melhor. Algumas pessoas não pensam nem isso. Outras, acreditam que a ciência dará um jeito de inventar a imortalidade nas próximas décadas. Sabendo que não ia envelhecer, AnaMi decidiu viver. E logo.

Para Ana Michelle Soares, o fim se apresentou com uma adaga pontiaguda, aos 28 anos. Câncer de mama. Depois, metástase. No auge da juventude, cheia de planos, desejos e futuros.

Ana Michelle tomou um baque, se viu obrigada a recalcular a rota. Com todas as dores, tratamentos, agulhas e quimioterapias, se viu com urgência de viver. Se colocava de igual para igual diante dos médicos, ciente de que a última palavra sobre a própria vida era dela. Fazia o mesmo com a doença e com o tempo.

Foi para Paris, lançou os livros “Enquanto eu respirar”, “Vida inteira” e deixou o terceiro pronto  – “Entre a lucidez e a esperança”, antes de partir (todos pela Editora Sextante). Deu aulas, fez palestras, até um TED. Foi a primeira pessoa não-médica a discursar para integrantes da Academia Nacional de Medicina. Foi a shows sonhados, conheceu gente incrível, mandou pintar de lavanda uma casinha em São Francisco Xavier, no interior de São Paulo, para onde fugia para tomar banho de natureza.

A diferença entre ela e a maioria de nós, é que a finitude se impôs de maneira concreta. A metástase avisou: ali, não haveria uma “história de superação”. Aquelas que nós, comunicadores, temos tanto vício em contar. Sobre quem deu a volta por cima, sobre quem teve fé e venceu, sobre quem não esmoreceu e não reclamou. Será que são só essas as histórias que merecem ser contadas? Será que faz sentido contar as histórias dessa maneira?

O câncer de Ana Michelle não teria cura; mas Ana Michelle, sim. Traçou, de verdade, uma jornada de cura e de autoconhecimento. Nos fez questionar a sério se temos mais dias na vida ou mais vida nos dias. O caminho dela foi o da segunda opção. Tinha a consciência real da finitude e fazia cada minuto ser valioso. Não era um papo de autoajuda barata: era uma vivência pé no chão, de quem escolheu aprender a lidar com o tempo. Era vida, vida real, vida demais. Chegava a nos ofuscar os olhos. Além da morte, ela tinha outra certeza: “A cura transcende a biologia”. E ela transcendeu.

Ana Michelle não era uma coitadinha, não era frágil, não era alguém que atraía olhares condescendentes. Ana Michelle era revolucionária. Foi, e ainda é, uma das principais vozes que estão mudando as perspectivas de comportamento em relação ao câncer, aos médicos, aos hospitais. Ela virou a mesa, ela foi protagonista. Seus valores e desejos eram imperativos, como deveriam ser os de qualquer pessoa que está na condição de paciente. E mais: convocou milhares de pacientes a ocuparem esse espaço com ela. Ela não andava só.

AnaMi também foi uma das mais importantes figuras para a difusão dos cuidados paliativos no Brasil. Furou a bolha. “Só se vive uma vez”, vem o senso comum novamente. Mas ela mostrou que só se morre uma vez; viver, é todo dia, toda hora, todos os minutos. Não era uma ode vazia ao carpe diem. Era uma vivência cheia de significados.

Pode ser difícil imaginar alguém sendo revolucionária diante de uma fragilidade de saúde. Refutava os estereótipos de guerreira e ficava maluca quando ouvia que “fulano perdeu a luta contra o câncer”, como se fosse questão de merecimento ou garra.

Hoje, AnaMi é um rastro de luz. Não há estereótipo de lenços, maquiagem e ações de Outubro Rosa em que AnaMi caiba. Seu corpo biológico não precisa estar vivo para que continue inspirando e ensinando. Os livros estão por aí, as entrevistas estão nos servidores que abrigam vídeos e podcasts online, o cheiro de lavanda segue suspenso no ar. A página @‌paliativas, inclusive, virou um espaço memorial. Todos que quiserem continuar entrando em contato com lufadas de frescor e de vida, podem.

O COMEÇO DE UMA NOVA HISTÓRIA

Este é um momento repleto de vida: o nascimento do Instituto Ana Michelle Soares – A revolução Paliativa. De um lado, saudade imensurável pela sua partida. De outro, o compromisso de honrarmos sua trajetória por meio dos Cuidados Paliativos, iniciativa em que ela tanto acreditava e pela qual lutava incansavelmente, até seu último suspiro.

O Instituto Ana Michelle Soares nasce de um forte desejo de transformação: o de ampliar o alcance dos cuidados paliativos no Brasil. Acreditamos na educação por meio do acolhimento e da informação. Nosso foco são pacientes, familiares, cuidadores e profissionais de saúde. A ideia é promover uma transformação social profunda, dando ferramentas para pessoas comuns reivindicarem seus direitos e, ao mesmo tempo, sendo ponte para a formação de cada vez mais paliativistas em clínicas, hospitais e na atenção básica.

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