A janela e a poesia da vida2 min de leitura

A janela e a poesia da vida2 min de leitura

“De vez em quando Deus me tira a poesia… eu olho pedra e vejo pedra mesmo!” 

Adélia Prado

Ao entrar em um quarto de hospital para atender uma paciente, notei que ela olhava sorridente e apaixonada para a janela. Ao perceber que eu havia chegado ali, logo disse:

– Venha cá ver… olha como ela tá bonita!

A princípio, pensei se tratar de delirium, uma espécie de confusão mental. Eu olhava e olhava para a janela, e via apenas uma janela. Ao insistir sobre a visão que a proporcionava tamanha alegria, decidi ser sincero e dizer que não estava vendo nada além de uma janela.

Então, o inesperado aconteceu: a paciente encostou meu rosto no dela e eu pude ver, por uma fresta pequena no canto da janela, uma árvore que ficava do outro lado da rua. A paciente ainda completou:

– Estou acompanhando ela a semana inteira e hoje ela floresceu. Olha como tá bonita!

Eu passo em frente àquela árvore todos os dias e, até então, nunca havia percebido nem que ela existia (quanto mais que desse flores). Talvez porque eu achasse que tinha coisas mais importantes para me importar, ou meu smartphone roubava minha atenção.

AQUELA MULHER, DAQUELE LUGAR, CONSEGUIU VER BELEZA ONDE EU SÓ VIA CONCRETO, FERROS E TIJOLOS.

Temos perdido o assombro diante da vida. Aquele assombro bom, aquele mesmo que a criança externa com um simples e bobo truque feito por um mágico ou com aquela brincadeira de se esconder com as mãos e depois se revelar.

Aquele olhar de assombro é a poesia da existência. Nós sabemos demais. Não temos tempo para brincadeiras, para firulas. “A vida é coisa séria”, a gente se convence. E, nessa seriedade, petrificamos nossa sensibilidade, perdemos a poesia e vemos apenas uma janela, nada para além dela, nada através dela, como se os vidros nem transparentes fossem.

É preciso trazer a poesia de volta à vida. Precisamos ver além das pedras, das janelas, dos olhares e mesmo das árvores. Como nos ensina Bertold Brecht, lutam melhor os que têm sonhos mais belos. Apenas quem sonha e quem vive com poesia é capaz de endurecer sem nunca perder a ternura.

Guerreiros ternos, guerreiros que leem poesia, guerreiros que brincam como crianças. Se permita hoje ao assombro diante da simplicidade e contemple a vida que há além das janelas.

Você consegue dizer algumas das coisas ou situações que você se lembra de ter sido invadido por essa ternura da poesia do dia-a-dia?

*o episódio relatado aconteceu antes da pandemia e das necessidades das medidas sanitárias vigentes

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